Marcelo Rubens Paiva relata no livro vinda da mãe à cidade para falar sobre o desaparecimento do marido
“Vou deixar meus cinco filhos justamente no Dia das Mães para ir a Londrina, mas vou por saber que estarei contribuindo para que não haja mais viúvas como eu e órfãos como meus filhos”. Foi com esse espírito, relatado à Folha de Londrina na edição de 13 de maio de 1979, que Eunice Paiva, então com 49 anos, veio a Londrina naquele domingo ministrar uma palestra a fim de reforçar a luta dela e da família na responsabilização da ditadura militar vigente pelo desaparecimento e morte do marido, ex-deputado Rubens Paiva.
A presença de Eunice na cidade é contada pelo filho, Marcelo Rubens Paiva, no livro “Ainda Estou Aqui”, que por ter inspirado o filme homônimo fenômeno de público no País já é um dos mais vendidos nas livrarias e lojas virtuais brasileiras. Na página 164, logo no começo do capítulo O sacrifício, o autor conta que a mãe falou para cerca de 200 pessoas em Londrina, mas não especifica onde e quando ela fez a palestra, nem quem a trouxe para cá.
Essa passagem não consta no filme e retrata um período em que o regime militar tentava vender a versão de que Rubens Paiva havia fugido da cadeia mediante sequestro armado por um grupo de terroristas – o que foi desmentido na ação movida pelo Ministério Público Federal.
Naquele ano de 79, Eunice já era advogada referência na defesa dos direitos humanos e uma das maiores especialistas do País em direito indígena, causa que a tornou mundialmente conhecida, conforme recorda Marcelo Rubens Paiva no livro.
Ele descreve assim a presença da mãe em Londrina:
Numa palestra que deu para duzentas pessoas em 1979, em Londrina, ela disse que ainda não tinha entrado com uma ação contra o governo, pois esperava as pessoas envolvidas no caso “perderem o medo de falar o que sabem”.
– Não adianta a União dizer que ele fugiu da cadeia, porque ninguém vai acreditar nessa história.
Contou que nem Buzaid [Alfrefo Buzaid, então ministro da Justiça] acreditava na fuga de Rubens, e que ele afirmou, ainda em 1971, numa reunião com a minha família paterna, um mês depois da prisão do meu pai, na casa dele em São Paulo, que meu pai estava preso no I Exército e machucado, mas que seria liberado em quinze dias. Buzaid garantiu que ela teria o marido de volta. Depois de pressionado pelos militares, Buzaid negou o que disse. Ela disse que Buzaid estava por fora de tudo. Ou mentiu descaradamente, deu injustificadas falsas esperanças, apertou a ferida da minha mãe.
PALESTRA MONITORADA PELO SNI
A palestra foi realizada na então Secretaria Municipal de Educação e Cultura, no prédio histórico em frente à Concha Acústica onde hoje fica apenas a Secretaria de Cultura, e tudo indica que tenha sido monitorada pelos militares.
Além de ter sido promovida pela Comissão de Anistia e Direitos Humanos de Londrina, que estava completando um ano de atuação, foi registrada em documento pelo SNI (Serviço Nacional de Inteligência), um dos principais órgãos de controle da ditadura. A reportagem do Paraná Norte teve acesso à cópia desse documento, fornecida pelo Núcleo de Documentação e Pesquisa Histórica (NDPH) da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Datado de 12 de junho de 1979, quase um mês depois, o registro do SNI reproduz trechos de falas de Eunice e informa que a palestra teve apoio de entidades como o DCE (Diretório Central dos Estudantes), Associação dos Jornalistas do Paraná (entidade que precedeu o Sindicato dos Jornalistas do Paraná) e Associação dos Docentes /do Hospital Universitário, entre outras.
Por Diego Prazeres
Foto: Reprodução
“Ninguém some assim, sozinho”, disse Eunice em palestra
Segundo reportagem da Folha de Londrina sobre a palestra (edição de 17 de maio de 1979), Eunice Paiva falou a uma “plateia atenta” que tinha esperança de que a verdade sobre o desaparecimento e a morte do marido em janeiro de 1971 viesse à tona. Rubens de Paiva foi levado de sua casa, na zona sul do Rio de Janeiro, por agentes da Aeronáutica no dia 20 para dependências do Exército localizadas na Tijuca, zona norte. As investigações apontam que ele teria morrido entre os dias 21 e 22 após ininterruptas sessões de tortura, com ocultação de cadáver pelos militares.
“Ninguém até agora admite que viu o Rubens morrer. A gente só sabe que ele foi tirado de casa e nada de concreto mais se informou sobre o seu paradeiro”, afirmou. A reportagem relata que Eunice estava certa de que algum dia receberia as informações que vinha buscando para entender de fato o que aconteceu com o marido. “Ninguém some assim, sozinho. Muita gente sabe disso e pode falar”, disse.
A advogada também explicou que não pretendia mover uma ação indenizatória contra a União, como havia feito Clarice Herzog, viúva do jornalista Wladimir Herzog, encontrado morto em sua cela nas dependências do DOI-CODI, em São Paulo, em 1974, por entender que eram situações distintas.
“No caso de Clarice havia um cadáver, que ela recebeu e enterrou. Para a ação ela teve de onde partir: a versão de que era suicídio, testemunhas, demissão do comandante do 2º Exército etc. Havia uma fundamentação para uma ação. Mas e no meu caso?”.
Ainda conforme relata a reportagem da Folha de Londrina, Eunice Paiva demonstrou em Londrina acreditar que a luta pela preservação dos direitos humanos e a CPI dos Direitos Humanos em curso no Congresso representavam uma “grande força” às famílias dos desaparecidos políticos. “É importante que [a CPI] vá em frente”, afirmou.
Foi somente em 1996 que Eunice Paiva recebeu da União o atestado de óbito de Rubens Paiva. Ela faleceu em 2018, aos 89 anos, já num estágio avançado da doença de Alzheimer, com a qual conviveu por cerca de 15 anos.
No filme “Ainda Estou Aqui”, a advogada é interpretada por Fernanda Torres, nesse que já está sendo considerado pela crítica um dos melhores trabalhos da consagrada atriz. Na fase final da vida (e do filme) quem encarna Eunice é Fernanda Montenegro, em uma participação arrebatadora em que interpreta apenas com o olhar. O Brasil tenta emplacar em Hollywood a indicação do longa de Walter Salles Jr. ao Oscar de melhor filme estrangeiro na premiação de 2025. (D.P.)
SNI relata em documento trechos da palestra
O ofício do Serviço Nacional de Informações (SNI) sobre a palestra de Eunice Paiva em Londrina tinha caráter “confidencial” e data de 12 de junho de 1979. Relata o dia em que o evento foi realizado – 13 de maio de 1979–, quem o promoveu e os principais pontos abordados pela mãe de Marcelo Rubens Paiva.
O documento informa que Eunice veio a Londrina por ocasião do 1º aniversário do Comitê Londrinense Pela Anistia e Direitos Humanos (CLADH) e falou para uma plateia de 150 pessoas presentes na Secretaria de Educação e Cultura de Londrina. A palestra, diz o ofício, teve apoio das seguintes entidades: Cooperativa dos Jornalistas do Paraná, Associação dos Docentes do Hospital Universitário, Associação dos Professores Licenciados do Paraná – núcleo de Londrina (APLP), Diretório Central de Estudantes de Londrina (DCE/Livre) e Diretório Municipal do MDB (partido que antagonizava com o governista Arena).
“Durante a palestra, Eunice Paiva referiu-se aos fatos que antecederam o desaparecimento de seu marido, em 1971, como a invasão de sua residência por seis agentes, que se diziam da Aeronáutica, e o convite feito a Rubens Paiva para os acompanhar”, descreve o registro do SNI.
O relatório prossegue: “Segundo ela, de repente sua casa foi invadida por seis agentes que se diziam da Aeronáutica, e pediram que Rubens os acompanhasse para algumas perguntas. Ele se despediu da família e saiu para nunca mais voltar. Eunice declarou que várias hipóteses foram levantadas sobre o desaparecimento do seu marido, corno o seu sequestro por terroristas ou que ele teria sido vítima da Operação Pára-Sar, porém nem uma (sic) delas foi confirmada”.
O SNI menciona na sequência que Eunice Paiva relatou aos espectadores que conseguiu falar com o então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, um mês depois da prisão do marido, e foi informada por ele de que Rubens estava machucado, mas vivo. “Me disse também – contou Eunice – que para ele sair de lá era uma questão de tempo, faltava cumprir certas formalidades. Explicou Eunice que depois de presidir três reuniões do Conselho de Defesa dos Direitos Humanos – onde o caso foi tratado –, Buzaid afirmou que na verdade Rubens Paiva havia fugido e negou que tivesse se avistado com ela”.
Ainda conforme relatado no documento, Eunice disse na palestra que não se mostrou disposta a acionar o governo para apurar responsabilidades sobre o caso afirmando: “Acho que o máximo que eu poderia conseguir era outra justificativa sobre como Rubens fugiu – e caso encarrado”. Não há, no registro do SNI, a fala de Eunice retratada no livro de Marcelo Rubens Paiva de que não adiantava a União dizer que o seu marido havia fugido da cadeia “porque ninguém vai acreditar nessa história”. (D.P.)
“Londrina sempre foi de vanguarda, hoje não mais”, diz professor da UEL
A reportagem do Paraná Norte conversou com o coordenador do curso de História na Universidade Estadual de Londrina (UEL), o professor doutor Marco Antônio Soares, para avaliar a vinda de Eunice Paiva em Londrina ainda sob o regime da ditadura militar, embora em 1979 já houvesse um movimento de abertura e anistia aos exilados políticos.
Ele afirma que a despeito de ter dado uma guinada de 180 graus rumo ao conservadorismo nos últimos tempos, a cidade sempre foi de vanguarda, mesmo durante os anos de chumbo. “Talvez por ser uma área de colonização recente, por vir gente de diferentes formações, em nosso centro urbano se encontrava um ponto de crítica ao regime. A cidade era de vanguarda, progressista, embora hoje não mais. Então, talvez fosse um ambiente onde o tipo da atividade proposta [a palestra de Eunice Paiva] teria valido”.
O relatório do SNI sobre a palestra de Eunice Paiva relata que o DCE (Diretório Central do Estudantes) foi uma das entidades que apoiaram a iniciativa do Comitê Londrinense Pela Anistia e Direitos Humanos (CLADH) em trazer a mulher de Rubens Paiva. Marco Soares pontua que o movimento estudantil era um dos principais focos de resistência à repressão que a ditadura militar exercia no ambiente acadêmico.
“O regime tinha um forte controle sobre o ambiente acadêmico. Então, tanto do ponto de vista da administração quanto da docência, o comum era ser simpatizante do regime. E dessa maneira, as oposições e as manifestações contra o regime eram absolutamente controladas, vigiadas na universidade”, contextualiza o professor da UEL.
“Mas o movimento estudantil, como era uma franca oposição ao regime, conseguia, fora do espaço da universidade ou de onde é o campus, articular ações contra a ditadura. Penso que [a palestra de Eunice Paiva em Londrina] tem a ver justamente com o movimento estudantil em oposição à repressão da ditadura”, afirma ele à reportagem.
Os movimentos sociais capitaneados pela Igreja Católica dentro da Teologia da Libertação – corrente progressista da instituição no Brasil – também foram focos de resistência importantes contra a ditadura na região, segundo Marco Soares. Ele cita como um dos mais representativos no período a Comissão Pastoral da Terra (CPT), fundada em Apucarana. (D.P.)
Confira abaixo a entrevista concedida pelo professor ao Paraná Norte.
O livro e o filme “Ainda estou aqui” estão em evidência num momento em que a PF indicia o ex-presidente Jair Bolsonaro e mais 36 pessoas acusados de arquitetar um plano golpista no Brasil, inclusive discutindo a morte do presidente e o vice eleitos, além de um ministro do STF. O que é importante para as novas gerações entenderem o que foi a Ditadura Militar e o risco disso voltar?
Tem um termo que eu gosto bastante que é a pós-verdade, porque parece que ela se materializa em diversos aspectos, um deles é negar que houve a ditadura. Dizer que em 1964 não houve um golpe militar, mas um movimento feito por civis para acomodar a bagunça e o perigo que eram as esquerdas, particularmente o comunismo. Vamos lembrar que o comunismo nunca foi muito forte como um movimento político no Brasil.
Teve a Coluna Prestes na década de 20…
Mas apoio popular de fato não teve. Era um idealismo da militância, que poderia congregar o povo para a luta, mas isso não aconteceu. Durante o período da ditadura, a classe média só foi tomar ciência quando seus filhos começaram a ser perseguidos, a ser desaparecidos, aí ela começa a ver que alguma coisa está errada. Tanto que o nosso caminho para a redemocratização foi dentro dos liames da ditadura, a luta pela anistia foi dentro das regras da ditadura. Tinha, por exemplo, o movimento por uma abertura ampla e irrestrita, o modelo da ditadura não era uma anistia ampla, mas negociada, vista caso a caso. O modelo de redemocratização não foi absolutamente democrático, foi capitaneado pela própria ditadura, que naquele momento estava numa sinuca econômica muito grande, sucessivos casos inflacionários e a população sendo afetada economicamente.
E sobre a importância de as novas gerações saber o que foi a ditadura militar mediante o que está acontecendo agora?
Isso é muito estranho, tanto negar que houve uma ditadura como hoje, em nome da liberdade – uma coisa bem paradoxal –, pleitear o fechamento do regime [democrático]. Se as pessoas que pregam e preconizam o fechamento do regime [democrático] e atentados terroristas fizessem isso durante a ditadura estariam mortas. Durante a ditadura, se você se manifestasse para derrubar o presidente seria preso. As manifestações de rua eram super vigiadas e controladas, com espancamentos e prisões. E, estranhamente, esse povo de agora defende na rua a volta da ditadura, porque se vigorasse o que eles pleiteiam não estariam na rua. Me parece que houve aí um problema em relação ao ensino, à questão da história e da sociologia, e como isso é passado no ensino médio. Isso é abordado nas escolas, mas talvez não com o vigor necessário.
Então na sua avaliação uma forma de as novas gerações entenderem o que foi a ditadura passaria por uma abordagem mais assertiva nos ensinos fundamental e médio?
Sim. A Comissão da Verdade tentou trazer essas questões novamente até o governo Dilma [2011-2016], isso estava sendo feito regularmente, investigando os crimes da ditadura etc. Após a deposição da Dilma isso foi sendo abandonado, abandonado, até a tentativa de esvaziar a Comissão da Verdade, que foi criada para mostrar que o que ocorreu em 1964 continuou por um bom tempo, pelo menos até a redemocratização, e essas pessoas que torturaram e mataram passaram a fazer parte do jogo democrático, sem sofrer sanção nenhuma. Diferentemente do modelo argentino, por exemplo, onde os militares tiveram que responder na Justiça. Aqui, a nossa forma de vir para o regime democrático foi um esquecimento, a gente teve que esquecer da ditadura para que a ditadura permitisse que a gente lutasse por uma redemocratização do país.
E qual a gravidade de nos dias de hoje planos golpistas serem arquitetados usando-se a estrutura do estado?
Aí tem uma grande novidade, que é o uso do terror e a instrumentalização da religião. A instrumentalização da religião faz com que surjam lideranças que não são questionadas, porque elas seriam abençoadas.
Você se refere ao lema Deus, pátria e família?
Isso, é um lema absolutamente fascista, assim como Brasil acima de tudo, Deus acima de todos. São lemas que de fato estão pouco ligando para a religiosidade do povo. O importante para eles é como manipular, por meio da religião, a vontade do povo. Eu atribuo isso ao crescimento das seitas evangélicas, mas também à penetração na igreja católica desses valores que questionam os direitos humanos, as políticas de igualdade, políticas para a diversidade, porque segundo eles são pautas da esquerda. Mas não são pautas da esquerda, são pautas de um universo civilizado, onde eu não tenho que eliminar fisicamente o outro por que somos diferentes. E aqui no Brasil quem não era a favor do último governo era “tudo comunista”. E uma das formas também de fortalecer esses sentimentos antidemocráticos é falar que a educação não serve para nada: “você não precisa estudar, vai ser coaching”; “você não precisa ter uma formação acadêmica, vai empreender”. Essa transformação de uma formação que é uma área mais universalista, pressupondo que todas as pessoas deveriam ter acesso à educação pública e de qualidade, também é minimizada. Mesmo dentro das escolas, com disciplinas que ensinam a empreender.
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